SER BIPOLAR

Texto de Ana Marques*


Desde que me lembro que ouvia a minha avó dizer referindo-se a mim: esta miúda ou está a rir ou está a chorar. Não conhece o meio-termo.
E realmente eu não conhecia, mas levei tempo, talvez demasiado tempo, para saber isso. E quando soube também não soube o que fazer nem como lidar com a informação.
Na escola era inquieta e tinha dificuldade em concentrar-me. Tudo nas matérias que os professores explicavam, me conduzia a analogias hilariantes. Ria que nem uma perdida e várias vezes fui posta na rua. Alguns professores achavam que eu gozava com eles e mandaram informações muito negativas sobre o meu comportamento para o encarregado da educação (meu pai) assinar. Ninguém procurou saber o que se passava comigo. Batiam e punham-me de castigo e eu, quando ia para a escola, levava as mãos transpiradas de nervoso, apetecia-me morrer e levava noites sem dormir a pensar porque é que me ria com tudo e com nada. Por mais que quisesse suster o riso não conseguia. A dor era imensa. Apesar disso ia tendo resultados mais ou menos satisfatórios porque os meus pais, ambos professores, insistiam em ensinar-me e em pôr-me de castigo a estudar. Eu sentia que os odiava.
Recusei ir para a Faculdade. Fiz o liceu e fui trabalhar para um Banco. Aí conheci o homem com quem casei e de quem tive duas filhas. Contudo a minha doença ia-se agravando. Se algo, aparentemente simples me podia dar uma alegria esfusiante que era acompanhada duma energia incontrolável que só se saciava com exercício físico, ou com sexo, também qualquer coisa que me dissessem de menos abonatório me fazia mergulhar numa tristeza imensa. Uma tristeza que me entorpecia por completo, que me apertava a garganta como um garrote e me trazia uma angústia tão terrível que eu sentia necessidade de magoar e de me magoar para que acontecesse algo que fosse mais forte que a minha dor. Mas nada era. O meu marido sofreu imenso comigo porque quando me chegava a “negra” eu era simplesmente insuportável. Feria-o, humilhava-o, tinha vontade de o contrariar. Mesmo que eu quisesse suster este impulso não havia forças em mim que chegassem para isso.
Foi numa festa de aniversário, em que esteve presente um psiquiatra famoso que este, ao olhar para mim e vendo-me muito excitada e fora de órbita, me disse para eu passar pelo seu consultório. Eu parecia ébria mas não tinha tocado em qualquer bebida alcoólica.
Foi então que a minha doença foi diagnosticada e que comecei a ser medicada.
Aí começou um novo calvário em casa e no trabalho. Ao assumir que sou bipolar assumo a discriminação e, pior ainda, um atestado de incompetência que estão sempre a atirar-me à cara cada vez que quero tomar uma decisão que afecte a outra parte.
Ainda que o meu comportamento se torne mais regular e eu consiga um melhor controle sobre as situações, toda a troca de opiniões, toda a tomada de posição acaba sempre por me mandarem tratar e isto dito como quem atira um punhal certeiro ao coração da vítima.
Um dia o meu marido sugeriu que mudássemos de terra e que eu procurasse fazer um trabalho que não me criasse ansiedades nem necessidade de gerir equipas. Comecei a trabalhar por conta própria, numa terra do interior em que organizo a minha vida de modo a não ter pressas. Consigo falar com pessoas simples e participar de várias actividades. Até deixei os medicamentos embora tenha visitas regulares ao médico. Visitas que escondo do meu círculo de amizades.
O meu marido deixou-me depois de eu estar bem. Compreendo que o desgaste de 12 anos foi excessivo. As filhas ficaram com ele. Foram elas que assim decidiram. Vêm ver-me por longos períodos mas nunca quiseram ficar. Para elas eu sou sempre um perigo. Uma espécie de vulcão que pode explodir o que realmente acontecia noutros tempos e elas sentiram-no na pele.
Estou a criar uma menina africana filha duma família numerosa e em dificuldades. Sou a madrinha e ela está comigo há 7 anos e até me prefere. Sem ela não teria sido capaz de sobreviver. O mais espantoso é que nunca tive medo de a amar enquanto com as minhas filhas senti sempre uma certa distância, como se não fossem de todo minhas.
Esta é igual a mim, desamparada e, por isso, não tenho medo.

* A autora não é conhecida por este nome.